Direto de Salvador, Melanina Acentuada Festival resiste ao celebrar a força da cultura negra e as suas expressões artísticas
Uma violência, quando destinada a um grupo social, nunca se resume à dor física. Há outra maneira mais eficaz de dominação, que danifica não só o corpo, mas a alma. Aqui se tem a violência simbólica, uma forma de dor mais aguda e duradoura. Nela, há um reforço da submissão, a agressão é mais velada, mas não menos dolorosa.
A violência simbólica não visa o corpo, mas a mente. É uma dominação que ocorre pela perpetuação de ideias discriminatórias, e no caso brasileiro, de pensamentos coloniais. Ao longo da história, os negros, além da escravidão, lutam contra essa outra violência, existente até hoje. Segundo o censo 2022 do IBGE, negros correspondem a 55,5% da população brasileira. Mesmo assim, agressões como exclusão, falta de representatividade, visão disseminada de seus corpos como fora de um padrão estético e falta de voz são ações rotineiras e não podem ser tratadas como exceções à regra.
Quantas vezes se viu um protagonismo negro na televisão? Mesmo com tantos artistas competentes, quantas expressões artísticas afro-brasileiras ganham destaque nacionalmente? Esses questionamentos tornam personalidades como a atriz Ruth de Souza mais importantes, sendo a primeira grande referência negra na dramaturgia com seus papéis. A atriz foi a primeira brasileira a ser indicada a um prêmio internacional de cinema, no Festival de Veneza de 1954.
Aos poucos, contudo, essa realidade vem mudando. A partir de uma maior conscientização e da força do movimento negro, cada vez mais essa população ganha representatividade e valorização em obras artísticas. Segundo a pesquisa TODXS/10 – o mapa da representação na publicidade brasileira realizada em parceria pela ONU Mulheres e Aliança #Sem Estereótipos, há uma evolução, com mais mulheres e homens negros em papéis de protagonismo,.
No entanto, essa evolução ainda precisa caminhar mais até um cenário de maior representatividade. Entre os papéis de protagonistas masculinos na TV, 20% são ocupados por homens negros, 74% por brancos; já em relação a papéis femininos, 27% são ocupados por mulheres negras, sendo 62% por brancas. Nesse sentido, permitir e destacar formas de expressões artísticas afro-brasileiras é uma maneira de resistir a uma hegemonia cultural que reforça o papel de subalternidade a essa população.
Esse começo de mudança vem também da importante participação de festivais dedicados à cultura negra. Tornar visível, dar protagonismo e destacar narrativas negras são atos políticos. Esses são os objetivos de festivais dedicados à cultura afro-brasileira.
O Melanina Acentuada Festival, assim, torna-se um forte aparato de resistência. Chegando em sua sexta edição, o festival tem sido um espaço de promoção essencial para histórias e artistas afro-descendentes. Ao longo dessa trajetória, o Melanina já acumula mais de 40 espetáculos desde sua estreia no lendário Teatro de Arena em São Paulo.
Com idealização do autor, ator, diretor e produtor Aldri Anunciação, o evento chega a Salvador, a cidade mais negra do Brasil, com o tema “Qualidade Transmídia das Narrativas Negras”. Nesta edição, há uma busca por evidenciar diferentes formatos de narrativas negras, que visem uma capacidade de adaptação de histórias para mais de um formato. É o caso da peça “Avesso da Pele”, adaptada do premiado livro homônimo de Jeferson Tenório.
Mais do que uma valorização, o festival tem forte caráter antirracista, configurando-se realmente como um espaço contra-hegemônico. No evento, haverá atividades como apresentações de espetáculos, mesas redondas, oficinas criativas, consultorias dramatúrgicas, leituras dramáticas, entrevistas públicas e compartilhamentos de processos criativos. Com exceção dos espetáculos com valor simbólico, as atividades são gratuitas. A ideia é deE fato atrair a população para a importante causa.
Essas programações, principalmente os debates nos ateliês de ideias, promovem um enriquecimento do público em relação a pautas negras, fornecendo também um letramento sobre a causa. Para além disso, ao destacar essas narrativas, a representatividade gerada pelo Melanina contribui para uma quebra de estigmas e uma maior aceitação de outros corpos em papéis de protagonismo, algo muito importante para as novas gerações assimilarem.
O Melanina Acentuada Festival é um evento possível através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, o que alerta para a necessidade de uma manutenção de políticas de promoção cultural no Brasil. Principalmente no que tange a exposição de expressões artísticas afro-brasileiras, essa valorização tem como intuito uma sociedade mais justa, que combata uma violência simbólica instituída séculos atrás.