Produtora audiovisual baiana gerida por mulheres negras se especializa em Ficção Científica
Quando se fala em Cinema Brasileiro, pouco se refere às produções que trazem a fantasia, o terror e ficção científica em seus roteiros. Parece até que é coisa de produções Hollywoodianas. Mas, há cinema de gênero sendo produzido no Brasil, mais especificamente em solo baiano. Sócia fundadora da produtora Saturnema Filmes, a cineasta Ana do Carmo já acumula mais de 20 premiações nacionais e internacionais, resultado de suas produções. Atualmente, está em fase de desenvolvimento para a gravação do seu primeiro longa metragem “Sol a Pino”, um sci-fi afrofuturista.
“É revolucionário realizar o sonho dos nossos ancestrais. Entender que o cinema de gênero também é pra pessoas como eu foi essencial para alçar novos voos e prospectar futuros pra minha carreira que eu nunca imaginei possíveis. Além da liberdade criativa, o que mais amo no meu trabalho com o afrofuturismo, a fantasia e o terror é a possibilidade de transformar o ordinário em extraordinário. E foram esses gêneros que me ajudaram a encontrar a minha voz, minha assinatura e minha identidade enquanto artista”, explica Ana do Carmo.
A paixão pelo cinema de gênero começou ainda na infância. Um dos meus primeiros contatos foi através da série de animação “Cyberchase”, onde os personagens resolviam desafios matemáticos em uma aventura cibernética e uma das protagonistas era negra. “Meu pai é cinéfilo e lembro da gente sempre maratonando De Volta Para o Futuro, E.T. e Matrix. Sempre que ele ia pra rua, voltava com um DVD pirata que ele comprava na Avenida Sete aqui em Salvador. Perdi as contas de quantas vezes assisti “O Auto da Compadecida” na Sessão da Tarde, que é cinema de gênero puro com direito a faroeste, aventura e vida pós morte. O cinema de gênero sempre esteve presente na minha vida e a cultura pop me formou enquanto cinéfila e cineasta. Quando eu entrei na faculdade e tive a oportunidade de fazer meu primeiro filme, de início não estava nos planos fazer cinema de gênero, mas na ilha de edição acabei incorporando de forma muito orgânica elementos do suspense. E desde que o cinema de gênero me encontrou, a gente nunca mais se desgrudou”, relembra.
Equipe Afrocentrada
A Saturnema Filmes tem uma equipe formada 100% por profissionais negros, como Rubian Melo, sócia e produtora-executiva. “Ser uma produtora negra fazendo cinema de gênero no Brasil é um ato de resistência criativa e cultural, me coloco à disposição de servir novas narrativas e ampliar o entendimento do que o cinema brasileiro pode ser. É um caminho um tanto desafiador, mas também cheio de potencial para transformar e enriquecer o panorama cinematográfico nacional e global.”
Já para Ana do Carmo, o aumento de pessoas negras em produções de gênero no Brasil tem ampliado o debate e a construções de narrativas mais representativas, como na série Histórias Impossíveis (TV Globo), um projeto antológico de gênero, construído e protagonizado por pessoas negras e indígenas e trazendo também pessoas não sudestinas para a colaboração. “Não à toa o cinema de gênero feito por mulheres negras, em sua esmagadora maioria, é protagonizado por pessoas negras. Se o cinema branco nos entende como protagonistas apenas de histórias marcadas por dor e racismo, a gente prova nas nossas produções que nossos corpos podem ser portal de qualquer tipo de história. O cinema de gênero produzido por mulheres negras provoca o mercado a nos olhar como artesãs de narrativas capazes de mobilizar qualquer tipo de público”, analisa.
Cinema de Gênero na Bahia
O cinema de gênero na Bahia apresenta características únicas que refletem tanto as influências culturais locais quanto às questões sociais e políticas da região. É o que acredita Rubian Melo: “A Bahia tem sido um importante centro para o cinema negro no Brasil, com filmes que exploram a experiência afro-brasileira, a cultura afrodescendente e questões de representação e identidade racial. Esses filmes muitas vezes destacam talentos locais e buscam ampliar a visibilidade e o reconhecimento da cultura negra. Acredito que o cinema de gênero na Bahia é variado e vibrante, refletindo a riqueza cultural e a complexidade social da região, ao mesmo tempo em que contribui para o panorama cinematográfico brasileiro de maneira única e significativa.”
Mas engana-se quem acredita que produções de ficção científica na Bahia são recentes. O que falta mesmo é reconhecimento e espaço para essas histórias. “Pouca gente sabe disso, mas o primeiro filme de sci-fi baiano é de 1981. Se chama “Abrigo Nuclear” e foi produzido, dirigido, editado e protagonizado por Roberto Pires. Existe sim uma cena independente de gênero na Bahia e estamos batalhando para fortalecer esse cenário. E não são os grandes streamings que estão abrindo portas para essas histórias e sim os festivais de cinema independente. Nós que estamos às margens do cinema brasileiro aprendemos fazendo, experimentando, acertando e errando, trabalhando em meio à guerrilha, precarização, baixo orçamento e poucos recursos. A Bahia é enorme e tem uma gama infindável de narrativas e temáticas, para além da escassez. Já passou da hora do cinema brasileiro nos enxergar como produtores de múltiplas histórias e apostar na gente”, finaliza Ana do Carmo.